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  • Mario Gioia

    Notas sobre paisagens particulares

     

    Relatar uma experiência como a vivenciada no laboratório em residência rural.scapes necessita de um tempo para sedimentação e ainda reverbera influências sem muitas linhas determinadas. Para um crítico de arte que passa alguns dias na interlocução com artistas diversos e de origens variadas num lugar tão especial, ainda se faz difícil grandes interpretações, mas comentários são possíveis. Vamos à tarefa.

    Residências rurais são relativamente comuns na Europa e muitas vezes não são qualificadas dessa maneira. Residências, apenas. No caso da rural.scapes na fazenda Santa Teresa, em São José do Barreiro, Vale do Paraíba, perto da tríplice fronteira entre os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, trazer mais informações sobre tal particular localização é importante.

    São José do Barreiro é uma pequena cidade que faz parte da rota histórica do Vale do Paraíba. Tem próximas Arapeí, Areias, Bananal, Queluz e Silveiras, também localidades de interesse turístico evidente, e é a cidade-sede do Parque Nacional da Serra da Bocaina, que se destaca pela biodiversidade.

    A fazenda Santa Teresa de certa forma sintetiza algumas das características do lugar. Passou pelos ciclos econômicos do café, do leite, do gado e hoje é mantida numa ocupação mista, sendo que uma das atividades atuais está ligada à economia criativa, por meio dessa residência em artes visuais. Possui grande área verde, um rio corta a propriedade, tem criação de animais e sua sede é um casarão de linhas simples, mas bastante sólido e que incentiva a vivência compartilhada entre os ocupantes _ tem instalações confortáveis, nada luxuosas, mas espaços comuns que fomentam a troca de experiências. Tem uma capela do começo do século 20 que termina por se tornar um dos principais pontos de interesse para sites specific.

    Para quem quer se aprofundar na história, a região pode fomentar investigações variadas. A Revolução Constitucionalista de 1932 teve trincheiras nos morros. Bandeirantes, garimpeiros e tropeiros tinham nas pequenas urbes, à época, marcos iniciais de suas empreitadas. Ainda há casarios, estações ferroviárias e construções diversas em bom estado de conservação. Belezas naturais da Mata Atlântica presentes na Bocaina garantem um fluxo de visitantes ligados ao ecoturismo e aos esportes de aventura. Antigas fazendas de estilo colonial hoje servem de guarida para o turismo rural. A gastronomia da região se baseia na vistosa comida tropeira. Ao mesmo tempo, mesmo com o turismo se desenvolvendo, a economia não é tão saudável e faz com que muitos se dirijam a centros maiores, como São José dos Campos e Taubaté.

    Os artistas Rachel Rosalen e Rafael Marchetti são os idealizadores e coordenadores do projeto. Nesta primeira edição, houve 139 inscrições, originárias de 17 países. Por meio de propostas específicas e portfolios, um júri internacional selecionou os residentes, que foram divididos em duas turmas. A inicial foi a que acompanhei, constituída dos brasileiros Alexandre Heberte, Marcelo Armani e Renato Hofer, além da argentina Ana Laura Cantera e do sul-africano Themba Mbuyisa.

    Na minha concepção, a presença de um crítico, também atuante em atividades curatoriais, representa uma opinião a mais dentro do caldeirão de referências que o período imersivo da residência oferta. É bom por trazer uma visão externa de quem está ligado ao contexto de hoje das artes visuais, mas nunca tenta impor restrições e olhares formulados. É mais algo que diz ‘Você pode tentar dessa maneira’ do que ‘Deste modo, você deve…’, além de apresentar uma ou outra pesquisa com conexões com as dos autores residentes.  Mesmo porque o que foi possível ver e discutir ainda eram quase fios de novelos ainda a serem desenrolados. O Paço das Artes, numa exposição temporária, exibe alguns desdobramentos.

    Foi interessante perceber que a variedade de linguagens e abordagens, resultado da boa seleção final, enriqueceu a troca de ideias entre os artistas. Muitos tinham conceitos iniciais que se tornaram outras coisas a partir da experiência local e do intercâmbio com os colegas. Rapidamente, é relevante comentar algumas das investigações dos residentes. O gaúcho Armani, dono de uma obra sonora robusta, mas não tão conhecida, criou uma instalação na antiga capela da propriedade, que se valeu também das próprias sonoridades do espaço e do entorno. Suas ‘paisagens sonoras’ também foram baseadas em materiais do lugar, como bambus, telhas e arames farpados, e resultaram em performances feitas em parceria, como a com Heberte. Ele, artista radicado em São Paulo nascido no Ceará, atualiza a tecelagem como matriz de uma obra híbrida. Por meio de oficinas e apresentações nas comunidades locais, desenvolveu outros vetores poéticos em sua produção, que também cruza atributos do design, do artesanato e da moda. Hofer realizou trabalhos a partir do caminhar, indo ao encontro de conceitos como a ‘forma-trajeto’ e a ‘altermodernidade’ de Bourriaud. Anotações, planejamentos de andanças nem sempre seguidos, escritos, desenhos e outros elementos do processo artístico devem apontar mais sobre o período vivido pelo artista mais do que propriamente peças finalizadas. Um workshop de gravura com a comunidade local foi importante em seu processo.

    Já a argentina Cantera tem na transformação um de seus principais vetores poéticos. Adepta de um processo que se liga à environmental art e a arte, ciência e tecnologia, desenvolveu experimentos que forneciam energia a partir de matéria decomposta, compactada em tijolos de barro, por exemplo, e realizou outras experiências a partir dos cupinzeiros abundantes na região. E o jovem sul-africano Mbuyisa, que passa boa parte de seu tempo trabalhando com fotografia de moda, revelou-se um retratista muito hábil, conseguindo formar uma série sólida, mesmo com o pouco tempo no lugar e a dificuldade na comunicação _ em São José do Barreiro, poucos falam inglês, e ele centrou sua câmera na pequena urbe e suas particularidades. A série também estendeu uma sensível observação sobre detalhes, vestígios, incompletudes, falhas e silêncios de todo o ambiente.

    Em síntese, a rápida exposição de trabalhos de todos os residentes em um espaço expositivo vai ajudar a ter contato com produções distintas, mas que se interconectam e se entrelaçam, ainda a criar resultados outros em breve ou mais futuramente.

    sobre o crítico:

    Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), coordena pelo quarto ano o projeto Zip’Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria. Em 2013, assinou por tal projeto as curadorias das individuais de Ivan Grilo, Layla Motta, Vítor Mizael, Myriam Zini e Camila Soato. No mesmo ano, fez as curadorias da coletiva Ao Sul, Paisagens (Bolsa de Arte de Porto Alegre) e das intervenções/ocupações de Rodolpho Parigi e Vanderlei Lopes na praça Victor Civita/Museu da Sustentabilidade, em SP. Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como a revista Select. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora), Memória Virtual – Geraldo Marcolini (Editora Apicuri) e Bettina Vaz Guimarães (Dardo Editorial, ESP). Faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. É crítico convidado do Programa de Fotografia 2012/2013 e do Programa de Exposições 2014 do CCSP (Centro Cultural São Paulo).