Campos Alterados @ MAC USP
A cultura do campo está baseada na cultura do faça você mesmo, desde o alimento consumido, que é produzido localmente ao invés de comprado, até a busca de soluções criativas para consertar um móvel ou a porteira. Nas palavras de Bruno Vianna*, “a arte do fazer em si já é uma forma de expressão” ou de Tania Aedo*, “A arte não é predeterminada, mas algo relacionado diretamente a experiência da própria vida”. Neste sentido, rural.scapes funciona como interface, abrindo possibilidades, estimulando, acionando, ativando, dinamizando, mediando e vinculando-se com local e o entorno social através de intercâmbio de conhecimentos criativos. ” (Brian Mackern*).
*membros do júri de seleção #labRes2015.
Notas-Deslocamentos
A criação de um programa de residência artística em um contexto rural baseado na ideia de experienciação laboratorial surge a partir do momento no qual nos enfrentamos com a administração de uma fazenda, com métodos produtivos distantes das lógicas ‘modernas’ e industriais de confinamento, respondendo a métodos mais clássicos-tradicionais, em campo aberto, no “fundo do Vale do Paraíba”, extremo sudeste do Estado de São Paulo, na tríplice fronteira entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Como artistas, com trajetórias já definidas no entorno urbano, percebemos que para poder assumir este lugar seria necessário re-aprender, através de um estado de resiliência total, para lidar com bois, vacas atoladas, vacinas, enxada, mata, carrapatos, cavalos, em um território carregado da negada história do início da formação do sudeste brasileiro, passando pelo eixos principais da Trilha do Ouro, a temporalidade das fazendas de café escravistas, a entrada do leite mineiro e os relatos do autor tão criticado hoje, Monteiro Lobato, e sua obra “As Cidades Mortas”, escrita em Areias, a 12 km da sede de rural.scapes.
Elaborando que tipo de intervenções poderiam ser realizadas no campo, tivemos a indicação do projeto, Interferenze New Arts Festival – Rurality 2.0, que acontece em Irpinia, em uma pequena cidade rural no Sul da Itália. A trajetória do Interferenze funcionou como inspiração para criação de uma intervenção com/ no local, que abre este território e compartilha esta experiência através de uma plataforma de laboratório em residência, ligado ao local-ambiente-geografia-história-ciências. Deste modo, lançamos a possibilidade de novos aprendizados compartilhados, intervenções, modos de ver e interagir diretamente ancorados no comprometimento com o território local e todas suas variáveis, visíveis e invisíveis.
A exposição Campos Alterados é uma aproximação aos processos artísticos emergentes e de intercâmbio vividos nestes dois anos, a partir das derivas e em suas resiliências, assumindo que somos todos aprendizes nesta trajetória.
rural.scapes – laboratório em residência é uma plataforma de residência rural que tem como foco a pesquisa, articulação, reflexão, práticas transdisciplinares artísticas e produção crítica em um ambiente rural produtivo. A seleção dos artistas se realiza através de uma convocatória internacional com inscrição on-line, seguida da avaliação de um júri internacional. Os selecionados desenvolvem suas propostas durante um período de 15 a 20 dias na fazenda Santa Teresa, em São José do Barreiro, São Paulo. Desde a primeira edição em #labRes2014, a plataforma rural.scapes – laboratório em residência oferece como elemento principal de pesquisa e criação o Ambiente Rural Local, abrindo diálogos e estimulando a criação de leituras, intervenções, espaços de compartilhamento e possíveis trânsitos-conexões-rupturas-integrações com este território específico, reconhecendo que o próprio laboratório em residência é uma intervenção com implicações locais. Consideramos as dinâmicas sociais, assim como os recursos naturais da região, como um patrimônio-chave na formação de três estados brasileiros [São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro], apontando, deste modo, um contexto historicamente formador de uma identidade porosa, fronteiriça, do modo de vida do sudeste brasileiro atual.
entreMeiosRurais – eletromecânicas e circuitos integrados em rede [on~off]
rural.scapes – laboratório em residência promove o desenvolvimento de propostas relacionadas à pesquisa e criação de obras e intervenções através de ‘entreMeiosRurais’, definidos a partir do uso e conhecimento das tecnologias pré-existentes na roça. Esta cultura rural, tradicionalmente baseada na construção de ferramentas e tecnologias para garantir a sobrevivência auto-sustentada, agora poderia ser reconhecida ou confundida com a cultura do DIY (Faça Você Mesmo). Mas à diferença do DIY, a transmissão e intercâmbio destes conhecimentos representam um valor de negociação, que condicionam e desenham as dinâmicas socioambientais locais. Nestas duas edições, #labRes2014 e #labRes2015, foram selecionados 26 artistas, dois críticos e dois pesquisadores residentes, produzidas mais de 30 obras, 5 performances, 8 eventos Fazenda Aberta, 7 exposições, 24 oficinas e 4 mesas redondas. Nesta exposição estamos lançando o acervo rural.scapes :: ARCHIVOS, que conta com mais de 5 horas de vídeo-documentação editada, reunida e exibida pela primeira vez no MAC USP e na internet.
Campos Alterados exibe uma seleção de obras e resíduos de processo de duas edições do projeto rural.scapes – laboratório em residência, a partir de situações emergenciais geradas pelo encontro de tecnologias tradicionais rurais e a eletrônica, de retro-tecnologias, de exercícios de transposições, traduções, transcriações e transplantes de topografias afetivas e geopolíticas, que rompem com a caixa preta das tecnologias industrializadas do “consumo e descarto” e do “plug and play”. Campos Alterados traz estas obras para o espaço expositivo formal do cubo branco do Museu de Arte Contemporânea, ativadas pela prática de laboratórios temporais instalados provisoriamente no Museu.
Transliteração
A proposta inclui o desafio da “transposição” das experiências deste “lugar”, o ambiente rural Cubo Verde (super-expandido), para o Cubo Branco urbano. Os processos de produção e dinâmicas propostos por rural.scapes que fazem sentido lá, fariam também sentido aqui? A disposição da exposição sugere a navegabilidade entre as obras, resíduos e derivas, como elementos de notações, interfaces, dispositivos que se relacionam à medida que transitamos, que elegemos um percurso neste espaço expandido através de conteúdos digitais do acervo rural.scapes/ARCHIVOS. Estes conteúdos são acessíveis através da tecnologia de leitura de códigos QRcode, ou seja, links para conteúdos digitais para serem visualizados e arquivados no celular do visitante da exposição. “Estes fragmentos funcionaram como portas espaço-temporais ou interconectores, e a partir daí precisei ouvir suas vozes”. Enrico Ascoli.
Métodos não tradicionais – campos alterados -<
A partir destes métodos não tradicionais, surgem novas perspectivas para tratar destas outras ruralidades, que emergem em rede e que atuam sistemicamente, através de um conjunto de práticas relacionadas ao comprometimento com o local. A criação de interfaces de conectividade recoloca estes ambientes no mapa, não como territórios residuais dos grandes centros urbanos, mas como atores importantes dentro da ideia de resiliência e resistência. Tais territórios, ou tais atores, nos ensinam que não são necessárias áreas imensas de plantio, e que pequenas áreas podem transformar-se em plataformas sustentáveis. Isto não significa retomar um romantismo perdido e bucólico de uma visão de natureza idealizada perdida, e sim reinserir estes territórios no contexto das redes, levando em consideração a própria organização e horizontalidade das mesmas.
A física quântica nos sugere que a simples observação altera o meio estudado, transformando o próprio observador e seus atos de dar a ver. A matéria base de rural.scapes são as redes, o ambiente como um todo, natural, etnológico e prótico, e a reestruturação das relações locais. Isto posto, as obras-dispositivos, imagens dispositivos, obras-interfaces, máquinas de ver pré-cinemáticas criadas em rural.scapes – Campos Alterados partem da processualidade como procedimento dentro de um ambiente imersivo não controlado – cubo verde super expandido – e da experienciação como base destes processos, em um constante jogo entre ação e elaboração, de escuta e geração de frequências sensíveis que alteram nosso ambiente perceptivo.
Considerando a natureza como um conjunto de inteligências e biossistemas em rede, Campos Alterados aponta pequenas emergências dentro de infinitos experiências de re-cartografar, em micro e macro escala, criando novas representações de antigas constelações, em processos que apontam a capacidade de resiliência destes sistemas. A sustentabilidade destes sistemas depende, fundamentalmente, do modo que se gera e consome energia. As obras-interfaces de Cantera, Garlet e Oliveira e Knelsen apontam para a criação de obras auto-sustentáveis em termos energéticos-estéticos, seja dando a ver imagens dispositivos como no caso de Ricardo, seja transformando resíduos em energia, como no caso de Cantera investigando e trabalhando sobre as energias mínimas em um contexto local, ou dando a ouvir o inaudível, no caso de Radioplanta (Oliveira e Knelsen).
Recartografias e intervenção são procedimentos presentes nas obras-dispositivos de Espinoza, Mestizo, Alves-Rodrigues, Crowe, Ascoli, Ganster, Heberte, Armani, duoB e Arvers. Entre a criação de máquinas de ver e interfaces para escutar, os artistas remapearam o território imersivo dentro da condição das novas ruralidades, ou seja, em rede on e offline, locais e translocais.
O mapeamento de “esquizoterritórios” é matéria de Espinoza. Através de dispositivos de escuta e de ferramentas de visualização geográfica, Espinoza aponta para redes que se acoplam ou sobrepõe a territórios físicos, as quais o artista define como próteses, gerando interferências e ruídos de fundo que, mesmo sendo muitas vezes inaudíveis, são sensíveis. O hackeamento do espaço aéreo através da transmissão destas frequências dá a ver estas novas cartografias, outras regiões de fronteiras híbridas, ou o que poderíamos nomear como cyber-geografias.
Neste ato de remapear, recartografar, surgem micronarrativas, como na performance coletiva de Lindberg, nos fanzines e tirinhas de Suneson, no (pré)live-cinema de Dalgo e Suneson e nas fotografias de Mbuyisa. Histórias do micromundo ganham espaço na rede, as singularidades encontram espaço e a coletividade se empondera a partir de suas próprias raízes. rural.scapes aposta na dinamização, vinculação, mediação e ativação do meio social local através da arte. E é a partir da prática da arte como um ato de necessidade, que Rabiei aposta em reconstruções de micronarrativas a partir de próteses, criando intervenções no mobiliário existente no ambiente da casa e em objetos encontrados e produzidos, através de um garimpo de histórias e saberes. Atos estes que o artista relaciona com a prática da gambiarra. Isto posto, resta-nos a gambiarra como o ‘ato de necessidade’.
Ainda em uma prática de garimpo e de micro-performatividades, Rodado reúne histórias e o conhecimento da comunidade das plantas locais, medicinais ou não, utilizando como dispositivo disparador dos processos de intercâmbio a produção de óleos essenciais, fazendo uso do olfato como ativador da memória e de territórios afetivos. E é neste território afetivo que duVa faz o público imergir (e imerge ele mesmo como performer). Apostando na ativação destas memórias e de territórios e paisagens interiores através da luz, a obra-dispositivo Espaço Alter(ado) v2, alocada na entrada na exposição, desloca, ativa e prepara o público para transitar nestes campos alterados.
Nota: A ideia de ‘multidão’, na acepção política do termo, altera o uso e ocupação dos territórios, interferindo nos processos sociais, assumindo funções dentro das estruturas, recriando-as. Partindo de Maturana, do conceito de inteligência coletiva, pensando, porém, na horizontalidade das multitudes produzidas pela rede (internet), é inevitável que este coletivo autônomo temporário se espalhe pelas ruas, em larga escala, como uma multidão de likes-dislikes. Nestas novas formas de ocupação de territórios, estamos falando de micropolíticas que provocam resistências, ruídos, curtos circuitos nas redes transnacionais e nos interesses econômicos globais, e que apostam na valorização dos saberes locais e do intercâmbio imaterial de conhecimento. Em zonas rurais não temos multitudes, temos indivíduos e talvez seja interessante re-ver estes territórios, onde as singularidades têm lugar e ainda constroem o sentido de pertencimento.
Rachel Rosalen e Rafael Marchetti
idealizadores de rural.scapes – laboratório em residência