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  • Eduardo Duwe

    Caminho para as estrelas de Eduardo Fernando Duwe (Brasil) propõe, ao mesmo tempo, a escuta de satélites e a construção de um satélite autóctone, uma “estrutura social” que questiona e revisita os imaginários espaciais na pequena comunidade rural de São José do Barreiro. O satélite se converte em objeto que cataliza e materializa o sonho popular de exploração espacial, reivindicando a representação dos imaginários hegemônicos e provocando a conscientização da descolonização. O artista prevê trabalhar com membros da comunidade para construir o artefato e ritualizar seu lançamento. O trabalho com imaginários espaciais, a participação da comunidade, os exercícios de escuta de rádio dos satélites e a qualidade dos trabalhos anteriores foram pontos positivos para o júri.”

    Texto Júri #labRes2016_1

    Eduardo Fernando Duwe. São Paulo 1967. Documentarista, cinegrafista e fotógrafo, autor de diversos ensaios, vídeos experimentais e instalações audiovisuais exibidos em festivais no Brasil e exterior. Coordena o coletivo de artistas Banda Esquizofônica e coletivos de artivismo em questões de povos tradicionais como o coletivo Tenonderã Ayvu e Mbaraete. Co-produtor do Festival de Resistência do Povos – Mbaraete.

    Trabalha para diversos canais de televisão europeus e brasileiros como ARD, ZDF, DW, Arte, ORF, BBC, Channel 4, CCTV, Spiegel, DFA, APTV, Reuters, Tv Brasil, TV Cultura em diversos documentários.

    Comentários de Juliana Gontijo crítica seleccionada #labRes2016_1.

    Desde as mais remotas culturas que temos conhecimento, o ser humano estabelece com o céu uma relação simultaneamente mítica e técnica: a observação do movimento dos astros conduziu tanto à criação dos classersos mitos de origem e deuses do espaço, como ao conhecimento sobre as melhores épocas de plantio e colheita, por exemplo. Atualmente, é desde as órbitas de nossos satélites artificiais que se estabelece a mais intensa relação entre ser humano e abóbada celeste, reconfigurada política e simbolicamente para uma época de silício e inteligência artificial. A datar do Sputnik 1, lançado ao espaço pela União Soviética em 1957, multiplicaram-se, velozmente, os satélites artificiais em órbita, monitorando a Terra e o espaço. Foi invertida, portanto, uma situação histórica de observação; agora, é a visão zenital produzida por artefatos tecnológicos que possibilita a observação dos fluxos terrestres.

    O projeto de Eduardo Duwe atualiza o vínculo entre o técnico e o mítico inscrito na espaço sideral para nossa época de satélites artificiais e estações espaciais. Posicionando-se como um curioso que, entre encantamento e experimentação, ensaia seus passos às custas de equívocos e desvios, Duwe construiu uma antena com tecnologia simples DIY para interceptar os sinais eletromagnéticos emitidos pelo satélite meteorológico NOAA. Softwares de código aberto possibilitaram a transcodificação em som e imagem desses sinais, interceptados na passagem do satélite pelo espaço aéreo da Fazenda Santa Teresa.

    Na configuração inicial do projeto, a ressonância dos sinais do satélite deveria, simbolicamente, repercutir numa ressonância interpessoal. Sendo assim, são nos alicerces sociais e colaborativos, virtuais e presenciais, que Duwe funda sua proposta. Enquanto alimentou com artigos, imagens e vídeos um grupo em rede social composto por pesquisadores e jovens interessados, promoveu encontros com adolescentes entre 11 e 15 anos, moradores do município de São José do Barreiro, com a intenção de construir, coletivamente, um cortejo-serenata para seduzir o NOAA. Entre a emissão e a recepção, essa comunicação sofreu a interferência de ruídos e talvez não tenha sido tão horizontal e plural como projetada1; entretanto, no contexto laboratorial de rural.scapes, essas falhas terminaram ecoando certas indefinições existentes entre a ideia de trabalho participativo e a colaboração consensual numa obra artística: a diferença básica aqui é a influência dos colaboradores no resultado final.

    No entanto, se a arte atual se debruça cada vez mais no interesse sobre a coletividade e no compromisso com setores específicos da sociedade, a despeito –até mesmo- da estética, como diz Claire Bishop2, é necessário, igualmente, refletir sobre uma tendência de crítica que rapidamente se reduz a uma avaliação ética e moral que condena uma prática como exploradora e egocêntrica, enquanto a outra, a colaborativa, é aprovada como inclusiva e, portanto, politicamente correta, esquecendo-se, frequentemente, que a arte não necessariamente deve contemplar uma eficácia social ou educativa, e nem o artista deve ser o agente portador de gestos exemplares. Ademais, a excentricidade, a dúvida, o absurdo e, inclusive, o prazer absoluto também podem conduzir a mudanças de perspectiva e a novas configurações coletivas. Se debruçando sobre seu próprio desejo e nos artifícios da criação autoral, Duwe estabeleceu, assim, um objetivo de ação estética, não de todo colaborativo; porém, compartiu o conhecimento e ferramentas práticas para alcançá-lo, criando temporariamente uma área comum de reverberações.

    A serenata ao satélite, finalmente, configurou-se como um ato absurdo, irônico, ambíguo e contraditório, que transpôs a relação mítica com o céu aos artefatos tecnológicos. Nesse deslocamento de cosmovisões, a imagem é revelada por um inclassíduo-antena, um porta-estandarte à maneira dos “cavalos” da umbanda: aquele que recebe, que cede o seu corpo, que é pura mediação. Nessa interceptação, os dados meteorológicos do NOAA perdem seu valor objetivo e funcional para se distinguirem por sua estética de ruídos, fora dos padrões convencionais de comunicação. Guiado por uma espécie de liturgia, o cortejo canta àquele desconhecido de metal e silício que nos observa desde o espaço celeste. Exaltada nessa narrativa ficcional, a tecnologia é indiciada em seu aspecto alienante (em razão do desconhecimento generalizado de seu funcionamento interno)3; porém, é também clamada em sua função social-mítica, que estabelece novos laços sociais e comunicacionais.

    Mito e rito reconciliam contrários irreconciliáveis; dessa forma, a liturgia do NOAA simbolicamente conecta, pelo espaço celeste, a dimensão técnica, a mítica e, igualmente, a política. Como concluiu o teórico canadense Arthur Kroker ao refletir sobre as novas esferas do tecnológico e virtual, “esta é a mais tecnológica das eras, mas também a mais mitológica”4. Nesse ato tecnológico absurdo, logo, nossa imaginação é lançada à deriva; a tecnologia da infosfera se infiltra, então, em nossos sonhos e nos afoga numa mitologia híbrida, ambivalente e, sobretudo, enigmática.

    1 O artista havia postulado, no projeto inicial, a realização de uma “escultura social”, conceituada por Joseph Beuys como um processo escultórico ampliado que invisivelmente dá forma ao pensamento e possibilita sua ingerência na transformação do mundo. Esse conceito foi cunhado a partir da ideia de Beuys que todos podem ser artistas.
    2 Bishop, Claire. “El giro social: (la) colaboración y sus descontentos”. En Artificial Hells. Participatory Art and the Politics of Spectatorship. Londres: Verso, 2012.
    3 O desconhecimento do modo de funcionamento interno das máquinas proporciona uma alienação generalizada, como aponta Vilém Flusser em Filosofia da Caixa Preta (1983), já que só permite o conhecimento do input e output dos dispositivos eletrônicos e pressupõe o fiel seguimento de manuais de instrução dos programas já desenvolvidos na fábrica. A exploração do corpo do trabalhador pelos meios de produção, tal como descrevia Marx, se torna, na era cibernética, apenas um dos aspectos da alienação: o econômico.
    4 KROKER, Arthur e Marilouise. “Deriva de código”. Em Code Drift: Essays in Critical Digital Studies. CTHEORY online journal. Publicado em 26 de agosto de 2011. Disponível em: http://ctheoryarchive.net/deriva-de-codigo/