Processos de escuta em #labRes2016_2 rural.scapes
por Mariela Cantú – crítica em residência.
“Bom ou mediano, sempre notei no início da chegada ao campo o que noto agora: o silêncio. Mas o silêncio não é a falta de ruídos, senão a discreta e suave harmonia de muitos ruídos a que não estamos acostumados e que precisamente formam o silêncio do campo. […] Estes ruídos não distraem, senão que abstraem, porque não são ruídos que interrompem o silêncio, senão ruídos que o formam.”
(González, 1984, pp. 277-278)
São Paulo, Brasil. Avenida Paulista, oito da noite, aproximadamente. Centenas de pessoas correm fugindo dos gases lacrimogêneos lançados poucos minutos antes pela policia. Estamos entre elxs. Paramos na calçada de um restaurante, para recobrar o fôlego e encontrar um amigo que estava perdido por causa da agitada correria. Calados, olhamos ao nosso redor. Muchxs manifestantes trocam olhadas de desconcerto. Outras pessoas, talvez indiferentes à situação, passeiam com bolsas de compras recém feitas. Vários moradorxs de rua procuram adivinhar que sucedeu. Algunxs, os que saem tarde do trabalho, apressam o passo sem olhar para trás, para não perder o transporte de volta para a casa.
Entre todo este movimento de corpos, destaca-se um. O de uma senhora que, com a respiração ainda agitada, tem cravados os olhos em nxs. Sem aproximar-se, começa a gritar-nos e a gesticular. “Tudo isto é culpa de vocês! Idiotas! Que não fazem mais que assistir a Rede Globo! Golpistas!”. Impávidxs, não conseguimos contestar. Que não estamos a favor da violência, que tal como ela, vínhamos fugindo dos gases. Uma sensação confusa nos invade. Mas escutamos. E durante a volta a casa penso que dispor-se a escutar, somente a escutar, pode tornar-se uma situação de risco.
A Fazenda Santa Teresa, sede do laboratório e residência rural.scapes, tem a potência de oferecer um entorno ideal para experimentar a complexidade e a versatilidade dos processos de escuta. Não casualmente, grande parte de lxs artistas que participaram desta experiência durante o mês de outubro de 2017 incluíram ao entorno sonoro como matéria fundamental de seus projetos. O projeto Derivas sonoras, de Patricio Dalgo Toledo, propôs a realização de oficinas coletivas abertas, gravações de campo e a criação de instrumentos sonoros com materiais pertencentes ao lugar – como por exemplo, bambu. Um dos maiores desafios deste trabalho parecia ser o de gerar processos de escuta com os habitantes do lugar. Que novos elementos – e a partir de que práticas concretas – poderiam revelar-se, a quem convive diariamente com uma paisagem sonora específica? Poderia um novo conhecimento sobre o lugar emergir para quem, acreditamos, está mais habituado a este entorno que os recém chegados? Sem dúvida, a aparente simplicidade de um microfone, foi suficiente para que xs outrxs habitantes da paisagem fizessem evidente a sua presença: a rigor, ninguém havia nunca escutado o inesperado som que fazem os bitus 1.
Escutar um território geralmente envolve lidar com a desorientação, com momentos de desconcerto, com a revelação de que, assim como o bailarino que ensaia até memorizar com todo o corpo, o tempo é um fator imprescindível para aprender a habitar o espaço. Tatiana Travisani e De Co Nascimento também apostaram na escuta como um dos pilares de seu trabalho, e pelo abraço destas perturbações como parte de sua força vital. Se o ponto de partida do projeto teve a ver com a utilização de mapas já existentes que davam conta da região (apesar de que, como todo mapa, de modo parcial), um dos focos principais apontou para a criação de outras cartografias que, longe de procurar uma codificação universal do espaço, habilitaram a inscrição dos trajetos afetivos, de lembranças, de marcas pessoais (e coletivas), que inscreveram saberes e desejos de seus habitantes no entorno deste território. Por sua vez, estes mapas e registros foram traduzidos em marcas visuais através da forma de pequenas perfurações ao longo de cintas de papel, para serem logo transformadas em melodias tocadas por caixinhas de música.
Por um lado, este processo habilitou a possibilidade de superar a percepção dos mapeamentos e as cartografias como práticas meramente ancoradas na visualidade, e a considerar como soa um território – e não somente como se vê. “Ouvir com os dedos, as costas ou com queixo, ver com os pés, tatear ruídos com as articulações, como valorizar esta mobilidade transeunte?” 2. Por sua vez, parece-me chave destacar que estas ações buscaram também envolver-se com uma escuta do espaço que pudesse abrir-se ao coletivo – em oposição a uma suposta individualidade da experiência de um território. Mais além inclusive da construção de uma composição coletiva com as melodias desenhadas pelxs participantes das oficinas (que foram organizadas para eles nos eventos Fazenda Aberta), grande parte do processo sustentou-se nos saberes e percepções compartilhados pelxs moradorxs do lugar, e ao ensaiar modos através dos quais estes pudessem unir-se em um conjunto aberto – em oposição ao conceito de mapa como a imposição de um poder hegemónico, unívoco e vertical, que muitas vezes condiciona a experiência de um território, mesmo antes de haver-lo percorrido.
Mesmo que a artista prefira não referir-se a idéia de tradução para conceitualizar seu trabalho, Sandra De Berduccy /aruma trabalhou em Llimphiri: Variaciones electroquímicas, de um modo vinculado à transformação de materiais em diferentes suportes. Baseando-se na proposta de gerar experiências eletroquímicas, o projeto de Aruma percorreu a extração de tintas de fontes naturais, para em seguida afetar-las através da ação da eletricidade. O resultado é que “gera-se uma espécie de cromatografia, porque a corrente elétrica decompõe a solução da tinta e revela o espectro cromático que a compõe.” 3 Assim como no trabalho de De Co y Tatiana, Aruma também caminhou pelo terreno do inesperado: o resultado das variações provocadas não poderia ser nunca previsto.
Ainda, assim como o trabalho de Aruma, a totalidade dos projetos viram-se atravessados por modificações – desejadas ou não, mas sempre inesperadas. Nunca um entorno pode ser um cenário decorativo ou uma mera tela de fundo, principalmente quando abrimos a experiência na qual estão implicadas pessoas. Do mesmo modo em que esta questão foi apresentada através da anedota que dá início a este texto, o desejo de envolver-se através da escuta e do diálogo pode trazer um certo nível de risco, muitas vezes vinculado a lidar com as expectativas, os (des)entendimentos e a potência do desapego. O projeto Sonorização de corpos táticos, de Tiago Rubini, foi proposto como um “conjunto de técnicas para que corpos dissidentes interferissem no espaço de maneira ostensiva e poética” 4, resultado da união de três trabalhos chamados Monitoração da Resistência Galvânica Anal, dildos orgânicos comestíveis e estridente. Se por um lado estes dispositivos analógicos foram elaborados e aperfeiçoados durante a residência, intuo que foi seu campo de aplicabilidade o que maior modificações atravessou. Parte da proposta versava sobre a possibilidade de utilizar-los como parte de um projeto de interferência em espaço público que, ao menos dentro da Fazenda, constituiu uma categoria complexa. Para além disto, a proposta buscava colocar-se como um potencial exercício de ativismo neste entorno, ligado a uma comunidade de pessoas não-heteronormativas, que tão pouco não parecia existir como comunidade já estabelecida em São José do Barreiro. Entretanto, descobrimentos de outras potências foram possíveis. Por um lado, desde onde não se detectava uma comunidade estabelecida (ao menos de acordo com os parâmetros habituais com que as consideramos ou classificamos nas metrópoles), variadas singularidades se puseram em diálogo em várias oficinas e apresentações de Tiago – nas quais apareceram desde dispositivos analógicos sonoros até maquiagem feita com elementos naturais do lugar. Também os dildos orgânicos comestíveis (“corpos passíveis de serem sonorizados eletronicamente” 5) levavam em consideração a interação com e entre seres e tecnologias que não foram necessariamente entre pessoas, aprofundando uma perspectiva anti-especista, em um ambiente que se nutre indispensavelmente de tais vínculos.
A tecnologia rudimentar da pintura galhofa, de Camila Soato, também tomava como ponto de partida o contato com a comunidade, baseando-se na coleção de histórias burlescas do imaginário popular da região, a partir de conversações periódicas com seus habitantes. Por diversas razões, o traslado às populações do entorno estava longe de ser regular, assim que paulatinamente o foco do trabalho foi movendo-se até a própria comunidade que estava habitando a Fazenda. Entre todos seus integrantes, a figura de Zé Mineiro, encarregado do trabalho geral da Fazenda, foi a que mais aportou ao trabalho de Camila, não só no que teve a ver com histórias de vida e anedotas que foram logo transformando-se em pinturas, mas também em um diálogo permanente com o território na confecção de bastidores, assim como das próprias pinturas.
Neste sentido, a vinculação entre Zé e Camila combinou a narração e registro de histórias orais, guiado por elementos que poderiam servir para a elaboração dos materiais que ela utilizaria em suas pinturas. A noção de observação, foi geralmente associada a uma proeminência da visualidade, “o que Le Breton chama a hegemonia sensorial da visão”6, a qual aprofunda uma hierarquia em relação ao resto dos sentidos que podem envolver-se no (re)conhecimento de um objeto, um ser ou uma situação. Ao meu entender, colaborações deste tipo conseguem complementar tal paradigma, incorporando a escuta e o diálogo como partícipes vitais do fazer visual.
Também Hábitat II, o projeto de Marcio Hirokazu Shimabukuro, a.k.a Shima, procurava estabelecer-se como um sistema relacional que abarcaria a preparação de um livro de receitas a partir dos diálogos e do trabalho compartilhado com Dona Cida na cozinha da Fazenda. A proposta envolvia a preparação conjunta da comida que seria consumida por todo o grupo de artistas da casa, juntamente com quem era a encarregada da cozinha desde algumas edições do laboratório-residência. Entretanto, este espaço fundamental de trânsito de saberes viu-se afetado por curto-circuitos na comunicação, que culminaram com a partida de dona Cida e, como consequência, a transformação de Shima como o único encarregado da cozinha. Como podemos supor, este processo esteve longe de ser harmônico, o que foi, sem dúvida, transformado em una potência por Shima, particularmente durante a semana em que decidiu deixar de comunicar-se verbalmente.
Não é preciso lembrar que a possibilidade da escuta vem do habitar o silêncio. “[O] silêncio tem a capacidade de provocar um deslocamento do centro da escuta, que em muitas ocasiões se traslada ao interior de si mesmo.”7 Dado que a escuta pode ser pensada, mais que tudo, como uma aquisição cultural, a vida sem emitir palavras habilita também uma nova aprendizagem, a partir do deslocamento de um ponto de escuta naturalizado – geralmente enfocado no fora, e percebido como um ato passivo.
Que um dos habitantes da casa tenha guardado silêncio faz-nos supor, quase necessáriamente, uma renovação e alteração das dinâmicas existentes, desde a proliferação de mensagens escritas por Shima em variados suportes, passando pela magnificação da linguagem corporal para fazer-se entender, até a sinalização de setores da casa antes ignorados como pontos de escuta habitados – por ouvidos, por corpos e por subjetividades várias.
Assim, este deslocamento desde um ponto de escuta inicialmente individual, passou de ser uma prática reduzida à cozinha e a um vínculo de dois (Shima e Dona Cida), a estender-se a um habitar de toda a casa e de seu entorno. Como se pode prever, a modificação das dinâmicas da casa não somente afetou a rotina diária das tarefas da casa, já que o tempo destes afazeres passou a ser compartilhado com o resto de lxs artistas. Mas além de uma mera distribuição de afazeres – que somente uma pessoa realizava, e que tiveram que repartir-se entre o coletivo – a partida de Dona Cida levou a necessidade de uma nova série de decisões (que demandavam serem tomadas em conjunto), e a consequente manifestação de desejos e interesses pessoais, inconformismos, acordos e propostas que reclamavam ser escutadas.
Em relação a este projeto considero que resta, não obstante, refletir sobre os motivos que forçaram as modificações da proposta inicial. Intuo que, apesar de praticar-las cotidianamente, necessitamos ainda desnaturalizar as artes da escuta e o diálogo, exercitando-os como atitudes mais que como ações. Os vínculos humanos não tem garantias, jamais conseguem ser previsíveis. Como superar a categoria colonial do “Outro”? Como aproximar-se a aquel/la que permanece como um enigma, sem cair nas esvaziadas fórmulas do “Eu sou…”, “Je suis…” (e todas suas variantes idiomáticas)? Ou como dizia López Rodríguez, “[q]ue é escutar? Mas, sobretudo, como escutar?”.8
Ao entrecruzar elementos dos trabalhos de Tiago, Camila e Shima, o projeto de Rosemary Lee perpassou os caminhos do anti-especismo, da combinatória de escuta e desapego da visualidade e do silêncio. Mapping the Wasp (Mapeando a vespa) propôs-se como uma instalação site-specific que pudesse dar conta das interações entre humanxs, animais, plantas e máquinas no entorno da Fazenda Santa Teresa. Esta instalação poderia ser considerada um dos projetos menos invasivos, pois foi a partir dos cuidadosos percursos de Rosemary pelo lugar que a artista conseguiu encontrar um entorno que já contava a priori com os quatro elementos sobre os quais ela estava interessada em trabalhar. O pequeno eco-sistema de um antigo tanque de água abandonado converteu-se então na plataforma de Mapping the Wasp, ao qual Rosemary contribuiu com a construção de um receptáculo de água de chuva que irrigava o interior do tanque. “… [M]uitas vezes falamos para não escutar, cantamos para não escutar, e até ouvimos para não escutar…”9, me dizia o artista Diego Makedonsky em uma conversa há alguns poucos dias atrás. Como posicionar-nos (artistas, investigadorxs, ativistas, pessoas) em relação aos processos que nos pré-existem? Qual é o limite entre uma intervenção e o avassalamento (ou inclusive, o risco da interrupção) de processos em curso?
Intuo que a escuta contém a potência de superação das particularidades de um indivíduo. Se a experiência do som existe sempre como uma relação – nenhum objeto consegue soar se não for acionado pela energia de uma vibração -, um corpo que escuta participa necessariamente da sinfonia de um sistema vivo, coletivo, relacional. Nesse sentido, e do modo como os projetos dxs artistas que fizeram parte desta edição de rural.scapes a abordaram, a escuta pode estabelecer-se como um campo no qual o risco participa de um modo vigoroso. Afortunadamente, deixar-se permear pelo som de fora pode afetar nossas construções de mundo, pode fazer-nos experimentar a não aceitação, pode colocar-nos frente a debates profundos com relação aos lugares que ocupamos – e de como o fazemos. Claro que para experimentar este sistema, é preciso escapar da escuta cotidiana até alcançar uma prática mutável que procure suspender, ao menos momentaneamente, as interpretações apressadas ou a superposição de valores próprios. E para começar esta tarefa, uma boa lembrança de Ramón Gómez de la Serna: “[o] silêncio nos faz, às vezes, sinais para que nos calemos mais do que estávamos calados”.10
1 No Brasil, inseto também conhecido como içá.
2 Criton, Pascale. “O ouvido ubiquo”. En Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica da PUC–SP. n.14, 2012. Pg. 31.
3 Extraído da proposta de Aruma para a residencia e laboratorio rural.scapes.
4 Extraído da proposta de Tiago Rubini para a residencia e laboratorio rural.scapes.
5 Idem.
6 Garriga Inarejos, Rocío. Op. Cit. p.66.
7 Garriga Inarejos, Rocío. “El silencio audible: de la escucha asombrada a la escucha generativa” em Arte y Politicas de la Identidad. vol 7 / Dic. 2012. p.65.
8 López Rodríguez, Juan Gil. “La escucha múltiple”. Em Quintana. Revista de Estudos do Departamento de Historia da Arte, núm. 8, 2009, Universidad de Santiago de Compostela. p. 310.
9 Durante um chat realizado em 15/11/2016.
10 Gómez de la Serna, Ramón. Total de Greguerías. 1962, p. 727.