seleção #labRes2016_2
Texto Júri de seleção.
Para além de suas tarefas óbvias (ler propostas, esmiuçar portfólios e entrevistar candidatos), o principal objetivo do júri era conjugar desejos e conciliar projetos, de forma a compor um grupo orgânico onde possíveis relações e desafios instigantes entre projetos poderiam acontecer. Com este objetivo colocado, nosso maior desafio era de como prever e avaliar ajustes sociais, políticos e econômicos, incluindo potenciais atritos.
Para de fato estimular estes promissores encontros e ao mesmo tempo responder às principais preocupações do rural.scapes, o júri intuitivamente procurou projetos que articulassem micro-políticas com o glocal, sustentabilidade e realismo ecológico com a tecnificação transhistórica, ou a política queer com as sensibilidades trans-espécies. Imaginávamos encontrar práticas artísticas que poderiam conectar mediatizações e materialidades a priori contraditórias, incluindo o agenciamento não-humano da vida animal, vegetal ou bacteriana, a longevidade mineral, dispositivos eletrônicos, audiovisuais ou computacionais, ou mapeamentos pós-digitais. Esperávamos porém, também favorecer práticas para além do audiovisual, que explorassem o tato, o olfato ou o paladar, e que se desdobrassem, menos como objetos mas como desafios microperformáticos em relação a seus ambientes. E acima de tudo: o júri queria ser sensível aos projetos que incluíssem aprendizagem mútua, ação comunitária não-linear e um interesse autêntico a este contexto específico.
Ao selecionar os candidatos para este tempo / espaço de um mês de experimentação remota, de tranquilidade produtiva e convivência forçada, fomos movidos por pensamentos tanto pragmáticos quanto lúdicos, na tentativa de provocar encontros improváveis e híbridos: será que uma bicicleta transformada em obra de arte urbana seria igualmente “verde” e “descolada” em estradas lamacentas e pedregosas? A quem se destinaría uma land-art produzida em Santa Teresa e quem deveria mantê-la? Ou será que obras efêmeras deveriam apenas apodrecer e retornar para a “natureza”? É possível transpor uma agenda pós-pornô para ambientes sociais “naturalmente conservadores”? Será que este frenesi filosófico contemporâneo em torno da estética “trans” (espécies / reinos / raças / classes / gênero etc.), supostamente tão contestatório em práticas de arte simbólica, seria realmente tão subversivo em situações em que na prática patos, cabras, galinhas, seres humanos, formigas, fezes, micro-biomas, espécies “nativas” ou “invasivas”, antenas, roteadores wifi, piezos elétricos e farmacologia já se fundem naturalmente?
Como membros do júri, compartilhando nossa reflexão com os criadores do rural.scapes, foi inevitável questionar de que maneira os proponentes imaginaram suas aproximações com a comunidade local, visto que sistematicamente sugeriam oficinas em arte e tecnologia ou projetos interativos, parecendo partir do pressuposto de que não haveria uma “visão crítica” partindo da comunidade. Quando pensávamos sobre as possíveis interações entre artistas e comunidade e entre artistas residentes nos intrigava prever quais questões poderiam surgir e ser estimuladas em uma comunidade artística tão variada.
Depois de uma intensa semana estudando as propostas profundamente, foram selecionados oito artistas a serem convidados para a residência em outubro. Ao lado da qualidade artística e poética das propostas, os outros critérios de seleção foram a adequação do projeto em relação aos objetivos da residência, a possível implementação no contexto local bem como a viabilidade concreta no âmbito dado e seu potencial para criar conexões frutíferas com projetos de outros artistas selecionados. Partindo da concepção da própria fazenda como um sistema vivo híbrido, várias propostas sugeriram integrar agenciamentos biológicos com eletrônica, fazendo o júri repensar este tempo/ espaço de 30 dias igualmente como um ‘circuito’ híbrido, como um meta-sistema entre as dinâmicas rurais e as tecnologias da informação.
Os projetos selecionados são:
Rosemary Lee – Mapeando uma Vespa: Rosemary prevê um sistema de visualização de interações entre plantas, animais, minerais, seres humanos e máquinas, com base em sua pesquisa com diferentes espécies que ocorrem em torno Fazenda Santa Teresa, destacando as qualidades únicas do bioma local. Seu objetivo é aumentar a consciência de que interligações entre os diferentes seres vivos e seu meio ambiente não podem ser reduzidas à coexistência entre organismos humanos e não-humanos, mas implica em uma conversa política maior sobre relacionamentos inter-espécies.
Tiago P. L. Rubini – Sonorização de Corpos Táticos: Tiago irá abordar questões políticas de gênero, especialmente relacionadas com a violência contra transexuais. Seu projeto tem como objetivo desenvolver técnicas de guerrilha poéticas a serem aplicadas no campo e em outros lugares, de modo a funcionar como sistemas de alarme para as minorias vulneráveis. A partir da perspectiva de pós-pornô, ele irá criar micro-sistemas de som, incluindo elementos orgânicos, e, possivelmente, cultivar dispositivos, literalmente. Para além dos aspectos políticos de gênero, suas obras expande o alcance da interação humana para integrar intersecções com outros seres, e questionar o excepcionalismo humano contrastado com o nosso próprio status de “seres multi-espécies”.
Marcio Hirokazu Shimabukuro aka Shima – Habitat II: “Nós somos aquilo que comemos” – esta afirmação abre caminho para o artista Shima de compreensão da cozinha como ponto de partida para um processo performativo diário (com 30 dias de duração), durante o qual a nutrição influencia, diretamente, a fisiologia e a psicologia. Shima propõe um intercâmbio processual em curso com Dona Cida, mestre cozinheira de rural.scapes e especialista em culinária tropeira e medicina natural, tornando-se seu assistente. As performances diárias incluirão os residentes e os visitantes durante os eventos na Fazenda Aberta. Esta proposta pode impactar fortemente a experiência diária do grupo e transformar, no sentido mais material e espiritual, todas as outras práticas artísticas. Nessa troca, será produzido um livro de artista de receitas.
Camila Soato – Tecnologia Rudimentar da Pintura Galhofa: Camila propõe a produção de tintas e pigmentos exclusivamente a partir de matérias orgânicas encontradas ao redor da fazenda, assim como a confecção de cavaletes e quadros a partir de materiais encontrados no entorno. Camila propõe envolver-se no imaginário da região, coletando histórias e contos locais, para finalmente criar uma série de pinturas que visam destacar a cultura rural e de cidade pequena. Tendo a vida cotidiana local como fonte primeira, e experiençando seus habitantes para além das conversas frugais, Camila quer fazer da cumplicidade um vector para compartilhar momentos cômicos e até mesmo constrangedores, representando-os através de seu bem-humorado imaginário pictórico grotesco.
Sandra De Berduccy /aruma – Llimphiri: Variações eletroquímicas: Llimphiri é composta por uma série de obras de arte têxtil resultantes de experiências electro-químicas baseadas na dinâmica entre meios ácidos e alcalinos geradores de eletricidade. Partindo de experimentação prévia de corantes naturais, Sandra vai pesquisar e experimentar cores e tons derivados de plantas locais, insetos e detritos encontrados no entorno da Fazenda Santa Teresa, bem como no Parque Nacional da Serra da Bocaina. O projeto enfatiza o potencial estético de cada ambiente, com os seus habitantes e suas habilidades, salientando a importância de preservar tecnologias rurais muitas vezes inexploradas. Suas tinturas dependem igualmente da preservação das tradições humanas e remetem a questão da conservação e regeneração da flora nativa.
DeCo Nascimento & Tatiana Travisani – Intimate Topographies (Topografias Íntimas): o projeto de DeCo e Tatiana está baseado em caminhadas diárias para coletar todo tipo de material que possa fazer emergir a paisagem sonora local. Como um ponto de partida para suas composições audio-visuais, serão oferecidas oficinas de mapeamento, onde os habitantes locais falarão sobre seus itinerários diários, transformando-os em mapas cognitivos correlacionados a desenhos topográficos com o objetivo de converter estes mapas em diferentes mídias. Estão previstos múltiplos resultados, tais como a composição de uma instalação multimídia e uma performance audiovisual, que deve acontecer posteriormente nos eventos Fazenda Aberta.
Patricio Dalgo – Derivas Sonoras: Patricio vai oferecer oficinas envolvendo a comunidade local, especialmente crianças e adolescentes, propondo interações lúdicas, incluindo gravações de campo, o contar de histórias e a criação de instrumentos feitos a partir de materiais residuais. Este repertório de sons ‘não-preparados’, produzidos por instrumentos experimentais serão traduzidos para a escala ambiente, usando paisagens maiores para alternar silêncio e ruído, resultando em uma composição audível na interação com a geografia.
Mariela Cantú – crítica em residência.
O júri está ansioso para ver, ouvir, cheirar, provar e tocar os experimentos de rural.scapes’ 2016_2, e os imagina como um fertilizante rural, social e uma incubadora tecnológica. No meio do terrível caos político que o Brasil vive hoje, é sedutor imaginar como esta zona rural (aparentemente) “bucólica” pode ser um local de experimentação de novos caminhos de resistência e mudança. Afinal de tudo, não seria de fato radical neste momento, além de socialmente e artisticamente eficiente, relembrar as pessoas de que precisam reexaminar sua “humanidade” à luz de suas próprias limitações, do antropoceno, e da necessidade vital de negociação com outros elementos e atores “para além de nós”, quando diante da “grandiosidade” da natureza? Nenhum cubo verde é necessário aqui….
Mais que de repente, a voz de Dona Cida ecoa desde a cozinha: “Por que estão todos tão quietos?”. Depois de tantos dias escutando nossas vozes exaltadas na sala de jantar em debates e risadas em múltiplas línguas, este momento tranquilo onde cada um trabalhava em seu próprio computador talvez lhe tenha ‘“soado” demasiado silencioso. Mas logo o perfume soprado desde a cozinha nos lembra que nosso tempo introspectivo está próximo a colidir com mais outra intensa temporada de ruidos e corporalidades.