Territorialidades transbordantes
Estamos na época da simultaneidade, estamos na época da justaposição, na época do próximo e do distante, do lado-a-
-lado, do disperso.
Michel Foucault
Territórios são campos de geografia subjetiva, onde uma dimensão simbólica, política e cultural transcende os aspectos materiais para traçar linhas -visíveis ou ocultas- e campos de força de permeabilidade relativa e cambiante, resultado do exercício de relações de poder, de controle simbólico, de dominação e capitalização da terra. Habitar um território é, então, estar imerso num processo de interação dinâmica, revelando potencialidades e limites, cicatrizes e mutações; redes emaranhadas em que convivem espacialidades e temporalidades heterogêneas.
Nas categorias que forçosamente dividem e tentam emoldurar o mundo, o rural e o urbano se antepõem e constroem, cada qual, um universo simbólico e imagético à parte. Porém, essa oposição não é real; cada espaço carrega em si qualidades heterogêneas, e também os fantasmas do que um dia foram. Nesse território dito rural, o passado das antigas tecnologias da terra, do corpo e do alimento colide com o futuro das novas divisões georreferenciadas, da biologia genética, da cientificação da paisagem, da informacionalização do espaço, do trânsito de informações em frequências eletromagnéticas.
Durante um mês, um grupo de artistas oriundo de distintas cidades do mundo e eu como crítica residente, experimentamos as especificidades desse território rural, desafiando suas fronteiras com novas configurações de força e buscando novas potencialidades em suas marcas i. Os trabalhos apresentados aqui podem ser entendidos como desterritorializantes a fim de propor pontos de fuga, transbordar as linhas e demarcações que imperam sobre as configurações dos espaços. Pensam a antiga Fazenda Santa Teresa, sede do projeto rural.scapes, como um lugar geográfico e simbólico, considerando suas inscrições e marcas, sua história e simbologia; e trabalham-na também como espaço, modulado e passível de reconstituição, abstrato, organizativo, mensurável, transponível e adaptável a necessidades específicas.
O deslocamento da cidade para o campo operou, no nosso grupo de residentes, uma desautomatização de procedimentos: se no meio urbano as ações e produções artísticas já se encontram justificadas e naturalizadas em sua relação com um determinado espaço social e geográfico, no meio rural torna-se necessário repensar as possíveis ingerências de nossas ações e produções, incorporar novos conhecimentos, retraçar os procedimentos desde sua origem para reposicioná-los nessa relação mais direta entre elemento, ação e totalidade, em que a relação de escala entre objeto e entorno adquire uma dimensão antes insuspeitada. O silêncio se evidencia ruidosamente perturbador, no caso de Edu Marin e Felipe Julian; o espectro magnético possui cargas de comunicação camuflada e oscilantes que impregnam de incertezas o trabalho de Martin Reiche, igualmente fraturado pela invasão de animais no cercado construído com arame farpado.
Mapa e território distanciam-se e voltam a se aproximar ininterruptamente. A objetividade técnica da construção cartográfica ii recupera as evidências de seu traçado subjetivo em favor de novas demarcações e da heterogeneidade de novas linhas de força. A cartografia alimentar de Yessica Díaz colhe em desenhos o que o território planta nos corpos dos habitantes; a “pedagogia encarnada” de Violeta Pavão constrói coletivamente um mapa dos espaços de conforto e desconforto sentidos corporalmente por um grupo de adolescentes da região. Ambos os projetos, ao tensionar e redesenhar as fronteiras que constituem esse corpo-uno, subjetivo mas também relacional, visam criar novos territórios de agenciamento e novos potenciais de enunciação, individuais e coletivos.
Nesse território que se desdobra -físico, corporal, subjetivo-, há um processo gradual de desarticulação da projeção mítica do tempo sobre o espaço; projeção essa que designa com uma conotação de passado, anacronicamente perdido na narrativa civilizatória, os lugares distantes dos centros de produção e suas respectivas populações iii. Assim sendo, durante o processo de residência-laboratório, a idealização que frequentemente guia a percepção e a relação com a comunidade local foi um ponto de controvérsia, revista e refutada à medida que os projetos que contavam com seus vínculos tiveram que ser readaptados. O cortejo tecno-pagão ao satélite artificial NOAA, proposto por Eduardo Duwe, por exemplo, buscava acionar uma imaginação mítica que terminou por adquirir contornos insuspeitos como consequência das tensões entre propositor-emissor, receptores e a própria ideia de comunidade que guia o projeto rural.scapes. As estruturas binárias da alteridade que organizam as práticas paternalistas do zelo e da educação verticalmente orientada foram postas em xeque numa confluência turva e perigosa. Estar cientes das complicações que podem trazer o desejo de sair dos nossos territórios de conforto é pôr em questão, principalmente, a posição de poder que nós mesmos ocupamos; um poder de ação e enunciação, sobretudo. Talvez seja um reinício necessário partir de heterogeneidade não-binária e não-identitária para, num sistema de trocas, permitir a autonomia e o empoderamento – palavra-slogan das lutas da atualidade- do que politicamente foi subjugado como “outro”, e finalmente alcançar “modelos relacionais de diversidade, partindo de um espaço/tempo discreto para áreas fronteiriças misturadas” ivv. Abdicando da propriedade do processo, artistas e gestores podem, igualmente, ocupar parcial e provisoriamente o papel de facilitador de conhecimentos e propositor de experiências, numa estrutura de colaboração horizontal que deve ser constantemente revista e ampliada.
O franco transitar pelo espaço altera, deste modo, certas configurações pré-estabelecidas e esboça um presente indefinido e fluido sobre as marcas simbólicas desse lugar identitário, relacional e histórico que é o território rural, construindo novas “heterocronias” e “heterotopias” vi, ou seja, novos recortes e sobreposições tempo-espaciais. Sobre essas camadas de configurações temporárias foi erigido o conjunto de bancos de gabião pensado por Edu Marin e realizado coletivamente, utilizando as pedras trazidas à margem do rio pela última enchente. A estrutura cria um espaço de convivência no meio do pasto, uma derivação da área de habitar comum da fazenda, e tenta organizar -e de certa forma, domesticar- numa forma geometricamente contida, o indomável fluxo de forças do espaço natural: um falso projeto, que já se sabe falho de antemão, pois foi pensado para ser levado pelo mesmo fenômeno de cheia que o possibilitou.
Na superposição múltipla e imaterial de territórios, se configuram novas zonas geopoéticas temporárias. Nesse sentido, o que a arte possibilita é a reverberação de formas, presenças e significados ocultos em meio ao já perceptível, fazendo emergir, igualmente, novas potencialidades de ação sobre esse território. Nesse constante devir, talvez seja demasiado utópico pensar numa reconfiguração de fronteiras orgânicas e permeáveis, na qual nem a natureza, nem a alteridade, estariam reduzidas a uma condição subalterna. No entanto, fazer visível o sistema de ações e relações de poder numa época de revisão do Antropoceno, pode abrir espaço a um agenciamento heterogêneo entre indivíduo, coletividade e espaço, começando pelos próprios participantes do projeto rural.scapes. Decididamente, não viemos para alterar e reconfigurar territórios e, sim, transbordar nossos limites.
Juliana Gontijo
São Paulo, agosto de 2016
i Os residentes foram selecionados a partir de uma convocatória internacional por um júri multidisciplinar composto por Bia Medeiros, Tere Badia, Pedro Soler, Rachel Rosalen e Rafael Marchetti.
ii A técnica cartográfica foi a primeira tecnologia a agir sobre um território reduzindo-o a uma bidimensionalidade repleta de linhas e traçados acrescentados pouco a pouco a cada intento logrado de dominação. Como uma representação fictícia e naturalizada em seu processo de codificação, o mapa domestica a natureza instável do território; transforma em objeto e recurso econômico a terra e sua simbologia; fixa-a no tempo, transforma-a numa superfície quantificável e, portanto, divisível, capitalizável e apta ao controle de seus fluxos através de mecanismos biopolíticos de poder. A representação do mapa se tornou o simulacro do território; e, logo, sua construção ideológica foi mascarada em objetividade técnica.
iii Johannes Fabian reflete sobre duas concepções que serviram de base à antropologia e seu entendimento do mundo: “1. O tempo é imanente para, e portanto coextensivo ao mundo (ou à natureza ou ao universo, dependendo do argumento); 2. Relacionamentos entre partes do mundo (no sentido mais abrangente possível de identidades naturais e socioculturais) podem ser entendidos enquanto relações temporais. A dispersão no espaço reflete diretamente, o que não significa dizer simplesmente, ou de maneira óbvia, a sequência no Tempo.” (Fabian, J. Time and the Other: How Anthropology Makes its Object (1983), apud Foster, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Londres: The MIT Press, 1996, p. 177)
iv Foster, Hal. “O artista enquanto etnógrafo”. Em The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Londres: The MIT Press, 1996, p. 178.
v Hal Foster assinala novamente o perigo que pode conter a estetização da mistura e a fetichização do “entre”. A ideia de miscigenação implica, previamente, uma ideia de “distinção prévia ou até mesmo pureza” (Ibdem, p. 277).
vi Foucault, Michel. “De espaços outros”. Conferência proferida no Cercle d’Études Architecturales em 14 de março de 1967, e publicada originalmente em Architecture, Mouvement, Continuité, n.5, outubro 1984, p.46-9.
Juliana Gontijo crítica seleccionada #labRes2016_1, pesquisadora, docente e curadora independente em arte contemporânea. Doutoranda em História e Teoria da Arte pela Universidade de Buenos Aires. Publicou o livro Distopias tecnológicas (Ed. Circuito, 2014), ganhador da Bolsa de Estímulo à Produção Crítica da Funarte.