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  • Violeta Pavão

    Entreterras, de Violeta Pavão (Brasil), é projeto de pesquisa que tem como foco a linguagem artística da performance.

    Busca, a partir de uma proposta prático-teórica, ampliar as percepções das forças políticas através da pesquisa de fontes orais, territórios, forças de resistências pós-coloniais como energia de trabalho, elemento terra, tudo isso, em relação ao corpo, corpo próprio, corpo do outro, corpo da cidade, corpo rural. Espera-se que o corpo, pouco explorado em versões anteriores, possa ser potência política e questionamento. Acredita-se, ainda, que esse projeto virá compor com os outros selecionadxs como elemento ímpar.

    Texto Júri #labRes2016_1

    Violeta é mestranda e bacharel em Artes Visuais pela UERJ. Como performerx, segue pesquisando maneiras de compor imagens com materiais e ações afim de discutir e trazer as forças descolonizadoras dos corpxs e espaços.

     

    Comentários de Juliana Gontijo crítica seleccionada #labRes2016_1.

    Entre as fronteiras (im)permeáveis do eu e do outro, o corpo é um território que se abre, se expande, se contrai, trava batalhas, ganha cicatrizes. Espaço interno e externo se constituem mutuamente na tensão entre o comum, o público, o privado e o íntimo. A sociedade moderna cartesiana construiu formas de condicionamento e disciplina para moldar corpos dóceis à máquina institucional do capital, reduzidos a objetos passíveis de controle e inferiorizados em seu poder de agenciamento coletivo e conhecimento de mundo. Corpo-máquina do capitalismo, nos dizia Marx; corpo-instrumento de biopolítica, Foucault retoma. Indagar o automatismo orgânico é um primeiro passo para reivindicar um corpo ativo, consciente de seu processo no mundo; restituí-lo como faculdade estruturante, dizia Merleau-Ponty, como “coisa sentiente, [isto é], sujeito-objeto”1, reconectando corpo e mundo para que o sujeito reapareça enquanto experiência encarnada e em estado de permanente construção devido a contingência das coisas.

    A proposta de Violeta Pavão requer escavar o corpo para instalar uma consciência processual que possibilita restabelecê-lo como experiência constitutiva do sujeito: a partir do “meu” corpo, conhecer o mundo. Nesse seu trabalho colaborativo em forma de oficinas com um grupo de jovens de São José do Barreiro (SP), a artista processualmente elaborou uma espécie de “pedagogia encarnada” para refletir sobre a conexão dos corpos com o território por eles habitado. Exercícios para desestruturar a noção de saber instituída com base no olhar e da racionalidade da fala foram empregados para explorar outras potencialidades de compreensão dos corpos, buscando encontrar, individual e coletivamente, um acesso direto às marcas deixadas por seus usos sócio-políticos. Da conscientização e enunciação à ação, pretendeu-se construir um habitar ativo que rompesse com os padrões de normatização e os resquícios do colonialismo e patriarcado cristão, a fim de atingir uma autonomia de agenciamento de cada “sujeito encarnado”, um empoderamento de cada corpo na intercorporeidade do coletivo.

    E no transitar de territórios, o corpo da artista também se insere na vivência da alteridade para questionar suas próprias marcas. Daí que vemos, na instalação final ocorrida na antiga escola rural da Fazenda Santa Teresa 2, onde os trabalhos produzidos nas oficinas foram expostos, suas anotações sobre processos de trabalho e objetos usados por ela em antigas performances. Portanto, não se fala desde uma perspectiva distanciada, em que o “eu” e o “outro” encontram-se em situação de oposição; ao contrário, “meu” corpo se conscientiza e se reconfigura a partir do “outro”.

    Esse “dar-se” pelo corpo finalmente terminou numa cartografia afetiva, na qual o mapa foi perdendo seus contornos objetivos, traçados desde a verticalidade das formas dominantes, para, finalmente, se tornar um elemento subjetivo que visualiza e potencializa ações. Os lugares de conforto e desconforto para esses corpos subjetivados nos espaços de circulação pública foram desenhados, como num diário íntimo, para constituir um livro coletivo, elaborado a dezoito mãos. Recopiado manualmente a fim de que cada corpo realizador conserve um exemplar, a cópia se torna original, o original e cópia se imiscuem; nas folhas de papel vegetal, os traços de cada um se sobrepõem ao copiar um desenho alheio e finalmente o modificam. O fazer de cada mão penetra no território alheio, retoma seus fluxos e transborda seus limites.

    1 Merleau-Ponty, Maurice. “O filósofo e sua sombra”. In: CHAUÍ, Marilena (sel.). Textos selecionados. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 195
    2 Nome da sede do projeto rural.scapes, localizada em São José do Barreiro, município do Estado de São Paulo.