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  • exposições rural.scapes

    Fazenda Aberta

    Foram realizadas duas mostras na fazenda como fechamento de cada período de residência, nos dias 22 de maio e 9 de julho de 2014. As duas mostras locais funcionaram em formato aberto, como Fazenda Aberta (open-farm), onde as comunidades das cidades próximas foram convidadas a visitar a fazenda e conhecer as propostas dos artistas em um ambiente não formal, próximo mas porém completamente deslocado de seus cotidianos. A terceira mostra foi realizada no Paço das Artes, em São Paulo, nos dias 29 e 30 de junho de 2014 e expôs uma seleção de obras produzidas em ambos períodos de residência, os textos críticos de Ananda Carvalho e Mario Gioia e um painel fotográfico com o processo das oficinas realizadas. Esta exposição faz parte do diálogo proposto como novos modos de pensar as relações e as redes entre ruralidades e os grandes centros urbanos.

    rural.scapes

    Processos de deslocamento, recorte, apropriação, resignificação, mímese, transcrição, imersão, intervenção permeiam o fazer dos artistas mergulhados em um ambiente rural, estranho, exótico, suspenso. O corpo a corpo dos artistas com o lugar, gerou processos de elaboração, intervenções pontuais, relações impermanentes. A experiência supera o discurso, restam as obras. Objetos residuais do processo.

    deslocamento, recorte, apropriação, resignificação
    Marcelo Armani ocupou a capela da Fazenda com uma instalação site-specific À CAPELA, baseada no peso que os escritos sagrados derivam ao ser humano. Depois de um grande processo de limpeza do espaço vazio, meio decadente, ocupado apenas por fragmentos de memórias, com água do ribeirão, Armani decide trabalhar com uma velha bíblia. O piso de ladrilhos hidráulicos foi recoberto com as escrituras. Sobre cada folha repousa uma pedra do rio. O livro, cuja retirada das folhas marca a falta, o ato de selecionar, a decisão do corte. A ocupação sonora perpassa pelo som da própria construção da obra, o lavar o piso, a sinos e cânticos gravados em uma Catedral francesa. Desta vez o som altera o espaço, dando-lhe uma dimensão que a pequena capela rural não tem, dando-lhe expansão, suspensão e leveza. Uma leveza perdida nos textos que repousam baixo às pedras. Além da instalação À CAPELA, Armani realizou outra instalação, desta vez com bambus. Ao apropriar-se de fragmentos de BAMBUS e transforma-los em caixas de ressonância, o artista distribui sons como seu Concerto para Cocho, bambus aquaplay, entre outras peças produzidas durante a residência, nestes amplificadores. A instalação ocupou parte do terreiro na frente da casa sede e criou um trajeto entre os vários bambus fincados na terra. Deslocamento, recorte, apropriação, resignificação são alguns dos elementos presentes no corpo da obra do artista produzido no rural.scapes intitulada “What is the sound that you see here?”.

    transcrição
    Alexandre Heberte trabalha sobre registros e memórias do Juazeiro do Norte e técnicas de tecelagem manual na construção objetos têxteis. Sua apropriação e conhecimento permite a construção, desconstrução e reinvenção da matéria têxtil. Nas obras desenvolvidas em rural.scapes trama o caminho do ouro e a história da região sobre o urdume metálico. Narrativas recuperam o antigo caminho do ouro, resignificada na obra “Trilha do Ouro”, assim como nas obras realizadas com fitas VHS. A obsolescência das mídias encontra o esquecimento das histórias locais no percurso das cidades (nada) mortas de Monteiro Lobato, transcritas na obra de Heberte.

    colaboração
    Armani e Heberte iniciam sua colaboração no processo de imersão rural, onde o som do tecer se transforma em matéria prima, ruído e performance nas mãos de Armani.

    apropriação
    Também na primeira mostra, Themba Mbuyisa cria um slideshow de suas fotografias em uma sala do porão. Pela primeira vez, os retratos que fez da comunidade local e as imagens dos alredores puderam ser vistas, criando uma especularidade invertida. Quem é este outro, estrangeiro, que revela algo de mim? Através desta relação especular, Themba busca em cada rosto as marcas vividas na África do Sul, país de onde vem.

    mímese
    Ana Laura Cantera trabalha no marco da Arte, Ciência e Tecnologia. Partindo de seu conceito de células de atividade microbiana, Ana Laura busca na terra da Fazenda a matéria prima para seu trabalho. A construção de seus inúmeros tijolos que juntos, geram energia, cria um elemento construtivo a partir do qual diferentes combinatórias são possíveis. Neste processo de construção e pesquisa com a terra, a artista argentina descobre o cupinzeiro (de terra), que servirá de inspiração para a construção de um ninho-morada, um pequeno cupinzeiro eletrônico, que gera energia através de suas células microbianas conectadas em série. Construído lado a lado com um cupinzeiro real, a obra de Cantera se mescla na paisagem, quase desaparece à distância, em uma mímese com a paisagem do lugar.

    apropriação, reinvenção
    Enrico Ascoli construiu, a partir de seu olhar estrangeiro, durante seu período de imersão um ‘wunderkammer’, ou ‘gabinete de Curiosidade’. Wunderkammer designa lugares que datam da época das grandes explorações e descobrimentos dos século XVI e XVII, nos quais se colecionavam multiplicidades de objetos raros, estranhos ou exóticos dos três ramos da biologia considerados na época: animalia, vegetalia e mineralia; além das realizações humanas. Enrico, vestido de seu olhar descobridor, construiu seu próprio ‘wunderkammer’, com elementos da fauna e flora da região da Bocaina. Estes elementos foram, pouco a pouco, transformado-se em instrumentos. A coleção ocupou o estúdio. Deixou de ser um gabinete para ser um estúdio de curiosidades. Neste ambiente, realizou gravações, desenhou seu livro de artista com as partituras compostas a partir de sua coleção e coordenou um workshop com os visitantes da exposição, que puderam experimentar seus instrumentos inusitados.

    apropriação, transcrição, resignificação
    Anja Ganster recupera fotografias antigas de São José do Barreiro e suas histórias, transcrevendo-as em aquarelas, desenhos, objetos., polaroides. Criando o que a artista nomeia de sistema aberto, a instalação Constelação 1 (the guy who was a friend of everybody e outros contos) recupera personagens reais em situações deslocadas. O sistema aberto na instalação permite que a construção de sentido se refaça a cada vez que os olhos percorrem a obra. O trajeto (fílmico, como bem notou Ananda Carvalho em seu texto crítico) se refaz, desfaz e reconstruções novamente, em uma tentativa insistente em recuperar algo que está perdido para sempre e no entanto vive através da obra. Constelação 2 também aposta no sistema aberto, mas como um jogo espectral invertido. Baseada na imagem do café nos terreiros de secagem das fazendas da região, Anja cria esculturas a partir do pó de café coado utilizado na fazenda. Na forma, para além das pilhas de café Ganster as associa com ‘breast’, ou o seio que amamenta. Com a quebra do café, a região do Vale do Paraíba foi ocupada com gado de leite. As esculturas-objetos de Constelação 2 são dispostas invertidas, sobre o piso, criando uma superfície reflexiva, invertendo a lógica do terreiro.

    apropriação, deslocamento, resignificação
    Marit Lindberg, em sua performance “oi de casa! Som das janelas” busca na comunidade de São José do Barreiro aquilo que existe como riqueza local e transforma, através do deslocamento destas situações de seu lugar comum, em performance. Os antigos casarões coloniais abriram suas portas (e janelas) para os seresteiros, sanfoneiros, violeiros mostrarem seus talentos. Uma seresta que aconteceu da janela para a rua, uma poesia da porta para fora, um piano no recanto da sala, calangos e arrasta-pé nas janelas do casarão. Um percurso de uma hora e meia que envolveu 25 pessoas em 10 janelas. A comunidade acompanhou e terminou dentro do cinema, que a muitos anos não funciona mais, provocando um deslocamento ainda maior, o da memória afetiva destes lugares.

    representação, transcrição, resignificação, colaboração
    Patrício Dalgo e Johan Suneson apostaram no desenho e nas oficinas como representação da história. Dalgo, através de seus projetores caseiros, criou dispositivos para a transposição das histórias em live-cinema performances. O deslocamento estava colocado desde saída, da criação audiovisual em tempo real com elementos transcritos das histórias produzidas não só, mas também pelos jovens que frequentaram os workshops, apontando a outras possibilidade de representação do que é o local e o rural. As performances de live-cinema de Patrício e Johan foram realizadas no antigo cine-theatro São José, ao final da performance oi de casa!. Patrício realiza ainda uma instalação “ESTO NO ES EL BING BANG”, no porão da casa sede. Nesta obra recupera elementos da história da região, transcrevendo-os para um ambiente audiovisual imersivo.

    imersão, alteração, impermanências
    A obra de duVa propõe a imersão. Mergulhado nas paisagens noturnas, tornado-se parte da paisagem, duVa realiza intervenções com luzes estroboscópicas e luz de leds neste contexto. Desta imersão surgem a Montanha Iluminada, Tronco Iluminado e Seres da Escuridão Iluminada, assim como Espaço Ater(ado)_V1. Espaço Ater(ado)_V1 dá nome ao corpo de trabalhos, reunindo como alteração as demais impermanências provocadas pela variação da luz, mas não só. Revela passagem do tempo através da suspensão, toca lugares mentais e anímicos, e altera a paisagem e quem fez parte dela. Na exposição final, para além das intervenções in situ, duVa mostra Tronco Iluminado. Através das luzes estroboscópicas, o velho pau de escravo da fazenda transcende sua condição de matéria para recuperar um lugar simbólico, por mais difícil que seja, na história da região.

    Paço das Artes

    Para o Paço das Artes, foram selecionadas obras como as Constelações de Anja Ganster, ‘bambu’ de Marcelo Armani, objetos têxteis de Alexandre Heberte, fotografias de Mbuyisa, desenhos de Johan Suneson, a instalação de Dalgo ‘ESTO NO ES UN BING BANG’, que foram expostas como propostas nas exposições na Fazenda. Outras obras, como Espaço Ater(ado)_V1 e de duVa, À CAPELA de Armani não eram transponíveis, tais como aconteceram em ambiente rural. Como trazer situações site-specific rurais para dentro de um Museu urbano? Foram expostas reconstruções, outras elaborações, maturações destas obras.

    Marit Lindberg e Ana Laura Cantera tiveram suas obras exibidas como documentação. No caso de Lindberg, foi exposta a vídeo-documentação da performance. Já da obra de Cantera, foram expostas fotos documentação da instalação site-specific, objetos residuais como tijolos e células microbianas e o caderno de artista, apontando ainda a questão processual da obra.

    O subsolo do Paço das Artes foi escolhido em função de sua situação híbrida e muito particular. Ao mesmo tempo que faz parte de um  Museu, está circundado de natureza. Este espaço intermediário nos permitiu realocar esta produção realizada em contexto rural em uma situação urbana, deixando marcas ainda do ambiente rural, para além do cubo branco.

    Rachel Rosalen e Rafael Marchetti
    idealizadores e curadores de rural.scapes – laboratório em residência